Já se passaram mais de cem dias desde o início da pandemia da Covid-19. No Brasil, quando foi registrado o primeiro caso de coronavírus, em fevereiro deste ano, as autoridades federais, estaduais e municipais adotaram medidas para mitigar a proliferação da doença que incluíram ações como paralisação das ocupações e serviços não essenciais, isolamento social, testagem em massa, entre outros. Agora, passados quase cinco meses, governadores de vários estados começam a estudar alternativas para promover a retomada segura das atividades e do convívio social.
A recomendação pelo isolamento pegou todas as pessoas de surpresa: ninguém estava preparado para passar tanto tempo em suas residências. O lar virou escola dos filhos, escritório do trabalho e a casa. Sem outra alternativa para evitar o contágio pelo novo coronavírus, a população não viu outra opção a não ser aderir ao confinamento.
Diferente do distanciamento que era praticado durante a peste negra – doença causada pela bactéria Yersinia pestis, que atingiu o continente europeu em meados do século XIV e resultou na morte de cerca de 1/3 da população européia na época -, o distanciamento proposto pela pandemia da Covid-19 é apenas físico. Hoje, com as tecnologias digitais, as pessoas continuam conectadas umas às outras, mantendo assim, um certo tipo de associação e vínculo coletivo.
Na época da peste, quem estava em isolamento não tinha acesso a nada. Agora, em pleno século XXI, as mídias levam até a sua casa todas as notícias do mundo. Você também consegue interagir virtualmente com as pessoas nas suas redes sociais, participar de reuniões de trabalho on-line, prestigiar o aniversário de alguém querido por meio de vídeos chamadas, assistir aulas em plataformas que possibilitam o aprendizado a distância, tem acesso a notícias do mundo inteiro, faz compras virtuais e por aí vai.
Mesmo com a flexibilização do distanciamento social, o “novo normal” aponta que o uso das tecnologias para os mais diversos fins é uma tendência que veio para ficar. Mas o ser humano foi criado para interagir com outros da sua espécie. Apesar do lado positivo, esse confinamento digital começa a dar sinais de que não é tão bom quanto parece. Em maio deste ano, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) realizou uma pesquisa com cerca de 400 médicos de 23 estados e do Distrito Federal. O levantamento revelou que 89,2% dos especialistas acreditam que a Covid-19 promoverá o agravamento de doenças psiquiátricas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também já alertou para o problema e o impacto da pandemia na saúde mental da população que é, segundo a entidade, “extremamente preocupante”. Para os especialistas, o isolamento social, o medo do contágio, a perda de pessoas da família ou amigos para a doença, a perda de renda e o cenário de incertezas estão contribuindo para o aumento de sintomas de ansiedade, estresse, síndrome do pânico, paranóias e depressão.
A situação é tão preocupante que, na capital de São Paulo, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) percebeu o aumento de atendimentos de casos de suicídio ou de tentativa de suicídio durante a pandemia. A tecnologia tem auxiliado a vida das pessoas durante essa crise, mas o ser humano precisa de contato físico, precisa de interação social presencial para se sentir pertencente ao meio.
Estamos rodeados de computadores, smartphones, tablets e inúmeras plataformas de gerenciamento de dados como o big data e a inteligência artificial. Aliados com a internet móvel, Wi-Fi e 4g, ingressamos em uma emaranhada rede que nos leva a navegar em um mar sem fim de informações e a ter a falsa sensação de interação social quando expomos nossas vidas em redes sociais diversas.
Pode ser uma foto produzida com uma legenda cuidadosamente elaborada. Ou um vídeo curto e bem humorado, que virou febre nessa pandemia. Todos estão ali, à espera de aprovação. Se a postagem não rendeu o número de curtidas desejado, algo pode estar errado. Pior! Com a cultura do cancelamento, uma vírgula fora do lugar – principalmente se o conteúdo não estiver alinhado com uma determinada narrativa – pode acabar, literalmente, com a vida de alguém.
Ninguém está disposto a ouvir, a dialogar racionalmente e, sobretudo, respeitar as opiniões alheias. O ser humano virou uma “coisa”, um produto que pode ser descartado a qualquer momento. A tecnologia, criada para unir pessoas, está sendo usada para promover uma violência digital tão severa que, somada ao isolamento social, está agravando os quadros de doenças mentais.
Isso sem mencionar o fato de que esse confinamento digital é para poucos. O Brasil é um país extremamente desigual: boa parte da população vive em comunidades sem condições mínimas de salubridade. Não tem água tratada, não tem coleta adequada do esgoto e a internet de qualidade, nesses locais, é um luxo quase impossível de acessar. Em casas pequenas, as famílias se ajeitam nos escassos cômodos para cumprirem a ordem do “fique em casa”. Homens, mulheres, idosos e crianças, sob essas condições, estão vulneráveis aos mais diferentes tipos de abusos e violência.
De fato, nessa pandemia não estamos todos no mesmo barco. Esse confinamento digital, portanto, pode ser muito bom por um lado, mas sob a ótica sociológica e psicológica, ele tem se mostrado muito nefasto. Os seres humanos não foram feitos para serem isolados, mas, sim, para viverem de forma coletiva e estabelecerem relações sociais presenciais e ter contato.
A sociedade está doente! Depois de mais de três meses de distanciamento, as pessoas começam a demonstrar que não estão mais mentalmente preparadas para continuar isoladas por muito mais tempo. Sabemos que a vacina ainda levará um tempo para ser aprovada e, por isso, precisamos repensar novas formas de convívio social presencial.
Como disse o filósofo romano Juvenal: “Mente sã, corpo são”. A frase, dita no primeiro século antes de Cristo, faz todo sentido nesse tempo em que vivemos. Temos que garantir a integridade física do ser humano, é verdade. Mas também vamos precisar de pessoas mentalmente saudáveis para reconstruir o país após essa crise. Que assim seja!
Adm. Mauro Kreuz
Presidente do Conselho Federal de Administração